sexta-feira, 1 de outubro de 2010

surf'm osasco





O rapaz em cima do vagão é William, 19 anos, pichador, pai de família e surfista de trem. sim, eles ainda existem. a "categoria" apareceu primeiro em nossas páginas, ficou duas décadas longe da mídia e tem raros remanescentes por aí


Surf'm Osasco.


William, 19 anos, pixador, pai de família e surfista de trem. Sim, eles ainda existem.

http://revistatrip.uol.com.br/revista/182/reportagens/surf-em-osasco.html
Texto por Lino Bocchini
Foto João Wainer.

"O trem balangou forte e jogou ele pro lado a milhão. Já caiu quicando, se arrebentando, quebrou perna, quebrou braço, quebrou tudo. Corremos com ele pro hospital, mas não teve jeito." AGN Astecas, codinome do pichador e surfista de trem, morreu poucas horas depois desse tombo, aos 21 anos. Quem conta é William, que com AGN aprendeu não só a surfar, mas também as manhas de pichar no alto de prédios, invadindo condomínios, enganando porteiros, arrombando portas ou escalando pelo lado de fora. William conta essas histórias minutos depois de ter passado, em pé no teto de uma composição em movimento, pela mesma curva em que AGN caiu. E você não tem medo de morrer não, William? "Até tinha um pouco, e depois do finado dei uma parada. Mas aí fiquei revoltado e voltei a surfar mesmo. Não tem pra ninguém aqui não, tio."
A fatalidade – ou "desavença", como dizem os manos – foi em 2007, nos trilhos próximos à estação Comandante Sampaio, periferia de Osasco. William mora ali perto, no Munhoz Júnior, bairro ainda mais pobre que a já carente vizinhança da estação, na divisa com Barueri. Foi por ali que a reportagem de Trip esteve com o fotógrafo e cinegrafista João Wainer, que assina com o irmão Roberto T. Oliveira a direção do documentário Pixo, em que William aparece (leia mais no texto seguinte). A intenção era registrar a performance no teto do trem, o que fizemos esperando debaixo de sol forte, em uma passarela baixinha ali perto, um lugar estreito, imundo e cheio de camisinhas usadas, ponto de encontro de gays da região.
A imagem do "surfista de trem" começou a ficar famosa em 1988, com a reportagem de Trip sobre o assunto (veja texto ao lado). Depois disso, outras imagens pipocaram aqui e ali, mas há duas décadas esse pessoal andava sumido. Ou, pelo menos, sumido dos olhos da mídia e de quem mora longe de fundões da periferia.
No domingão em que estivemos lá, além de William (que assina "Operação" nas paredes) estavam seus amigos Biscoito (União 12), parceiro de latinhas e outro aficionado por topos de prédios, e Djan (Cripta), pichador mais velho – 25 anos – e respeitado, que há tempos filma as ações da turma, material que edita e vende em forma de DVDs. William, Biscoito e Djan não conhecem muita gente que ainda surfe trem, fora os "finados", forma respeitosa pela qual se referem a todos os colegas que morreram, todos de forma violenta. De fato a atividade não é assim uma pelada no campão. O trem balança de um lado pro outro e o maior perigo é a companhia constante de um fio de altíssima tensão à altura da cabeça, que pode matar com um leve toque. Por isso mesmo nas imagens o pessoal está sempre abaixado. "Mas na retona, quando tá suave, até dá pra ficar em pé, tranquilão", desbaratina William.
Não bastasse, ainda tem os seguranças, fator que agendou nossa reportagem para o domingo, dia mais tranquilo nas linhas da CPTM, a não ser quando a galera está indo ou voltando de jogo de time grande em São Paulo. William sabe o que acontece se parar na mão deles. "Já me pegaram, levaram pra uma salinha e me deram uma coça. Falavam: 'Por que você tava em cima do trem?'. E eu: 'Sei lá, por aventura?'. 'Gosta de aventura, é? Então toma!?' E batiam mais. Mas tudo bem, depois me liberaram", conta, com jeito de quem já viveu bem mais do que os 19 anos que constam no RG.

William nasceu no Rio e veio bebê para São Paulo, com os pais. Quase todo fim de ano volta à cidade, fica na casa de parentes no morro da Providência. "Maior morrão da hora, dá até pra ver o Cristo de lá." Surfou uma vez em um trem de subúrbio carioca, a caminho de um baile funk. Gosta muito de ir à praia, mas nunca surfou no mar, sequer tentou. Não tem sotaque, mas guarda ligações com a cidade. Quando entrou na estação para a sessão que seria registrada, por exemplo, fez questão de trocar de camisa. Pôs uma do Flamengo. "Vai ser mais legal quando eu mostrar lá."

Em São Paulo, a vida não tem sido fácil. Pobre e analfabeto, William só consegue ler algumas palavras curtas, e mesmo assim com dificuldade. Para ele, é mais fácil entender as pichações. As que já viu pelo menos uma vez, reconhece e lê de longe. As demais, precisa da ajuda do amigo Biscoito para decifrar. O último trabalho fixo que teve foi descarregando caminhões de abacaxi. "E também já fiz uns 12 por aí." A expressão, como tantas outras de William, pede uma breve tradução: "fazer uns 12" vem do artigo de mesmo número, parte da legislação sobre drogas do Brasil, e refere-se ao tráfico.
Bom menino

Pichação, surf de trem, pobreza e drogas, tudo junto, podem pintar um quadro feio de William para o leitor. O rapaz, entretanto, é tímido, discreto, fala baixo e pouco. Parece mesmo um bom menino, acredite. Inspira confiança e assusta mais pelo destemor do que pelo currículo. Na porta da estação, acendendo um baseado às quatro da tarde com a naturalidade de quem toma um guaraná, William fala de novo do parceiro AGN. "Quando eu ainda era de menor, a gente pegava trem direto só pra ficar surfando, ficava indo e voltando até Itapevi", relembra, com um ar nostálgico de quem fala de algo muito antigo, mas que não faz nem dois anos. Hoje surfa menos, fazia quatro semanas que não se equilibrava em um teto em movimento.

Agora também é pai de família, tem mulher e filho esperando em casa. "O Hugo tem só 7 meses e já tá nas caixas-d’água", diz, orgulhoso por ter escrito o nome do filho no alto de alguns prédios. Apesar de a mulher também estar desempregada, diz que vai tudo bem em casa. "Por enquanto está suave criar o garoto, depois vamos ver. E meu pai ajuda, às vezes põe uma moeda pra mim." Medo de morrer ele não tem, OK. Mas, William, e se seu filho resolvesse surfar trem, você não ia ficar preocupado? "Lógico, muito."

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