quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Colômbia abaixo e à esquerda

seg, 2010-11-22 14:52 — Especial


Raúl Zibechi

Os importantes acontecimentos de outubro no cenário político sulamericano, os dois turnos das eleições brasileiras e a morte do ex-presidente Néstor Kirchner, além das repercussões dos acontecimentos no Equador em 30 de setembro, tiraram a atenção de um dos mais importantes feitos que envolveu os movimentos sociais: a realização da primeira sessão do Congresso dos Povos, em Bogotá, Colômbia, entre 8 e 12 de outubro.

Alguns números dão conta da importância do acontecimento. Até a Universidad Nacional, sede do congresso, chegaram 17 mil integrantes de 212 organizações, 8 mil de Bogotá e arredores e outros 9 mil do resto do país. O primeiro dia de debates esteve organizado em torno de setores sociais e se formaram 34 comissões. No segundo trabalhou-se por regiões e se formaram 56 comissões. No terceiro dia houve debates em dois grandes grupos em torno de estratégia, mobilização e proteção, e realizou-se depois uma plenária. No dia 12 de outubro, finalizando o congresso, uma enorme marcha foi realizada até a praça Bolívar, a mesma que foi cenário das primeiras ações contra a dominação espanhola há 200 anos.

“Eu diria que é uma coordenação desde baixo”, assinala um integrante dos Hijos (Filhos e Filhas pela Memória e contra a Impunidade), recordando que trata-se de um longo processo nascido com a mobilização do povo Nasa (indígenas que vivem ao norte do departamento) de Cauca, que realizou sua primeira marcha de protesto em outubro de 2004 até a cidade de Cali. Nessa data foi realizado o Primeiro Congresso Indígena e Popular, que não foi uma disputa de oratória senão, como dizem os nasa, o início do longo processo de “caminhar a palavra”. De algum modo, o Congresso dos Povos foi possível graças à determinação nasa, algo que foi visível na Universidad Nacional, local protegido pelas centenas de integrantes da guarda indígena.

Indígenas, afrodescendentes, camponeses, mulheres e jovens – além de centenas de meninos e meninas que fizeram seu próprio congresso – abandonaram “o costume inveterado da representação do povo e da delegação de sua vontade em partidos ou vanguardas autoproclamadas”, segundo a leitura do economista e militante Héctor León Moncayo no jornal Desde Abajo. Também compareceram grupos de migrantes – 4 milhões como consequência da guerra -, de desempregados e sem teto, junto a grupos de gays, lésbicas e transexuais.

A grande ausência foi do movimento sindical, que segue ancorado na cultura da representação e da demanda ao Estado. Pelo contrário, o Congresso dos Povos foi construído com base em decisões levantadas desde as bases. “Ninguém falava como líder nem como indivíduo. Falavam como região, como organização, como camponeses ou como jovens”, disse a integrante dos Hijos. As delegações tinham responsáveis para as diferentes comissões do enorme acampamento que se montou na Universidad Nacional: limpeza, alojamento, comida, logística, comunicações, entre outras. A convivência fez do congresso algo diferente aos clássicos encontros das esquerdas e das organizações institucionalizadas.

O encontro foi, de algum modo, uma avaliação geral do “caminho escolhido desde os anos 90, o da representação, o eleitoral, que deu como seu principal fruto a formação do Polo Democrático Alternativo”, aponta León Moncayo. Não ficou somente nos debates. O encontro apontou para além da denúncia e da submissão aos governantes, e proclamou seu desejo de começar a construir um mundo novo, algo que os participantes denominaram “legislar a partir de baixo”. Nas comissões trabalhou-se com base em três perguntas: quais são os problemas, o que vamos fazer com eles e como o vamos fazer. Uma nova cultura política na construção que não demanda, mas constrói, não delega, mas articula, como acontece nas comunidades indígenas de todo o mundo.

O congresso foi realizado em um momento político decisivo para o país. O presidente Juan Manuel Santos está começando a implementar sua política de “unidade nacional” que busca superar a polarização interna e o isolamento internacional herdados da gestão de Uribe, enquanto se mantém a mesma política econômica e a agenda neoliberal. Um dos propósitos centrais para sustentar a governabilidade do modelo consiste em superar o estilo próprio de fazer politica integrando o conjunto da burguesia ao novo governo e, sobretudo, em institucionalizar as organizações e movimentos sociais por meio de uma estratégia de cooptação. O vice-presidente de Santos, o ex-esquerdista e ex-membro da Unión Popular Angelino Garzón, é uma peça-chave. O Congresso dos Povos saiu contra esta nova estratégia dos de cima ao começar a reverter a dispersão dos de baixo.

Nos próximos dias 20 e 21 de novembro se reunirão representantes das 212 organizações que compareceram ao congresso para desenhar planos de trabalho com base nos relatórios das comissões. Em meados de 2011 começarão a ser realizados encontros regionais e temáticos para expandir e aprofundar o processo iniciado. Um processo que nasceu em centenas de assembleias e redes comunitárias e regionais retorna para baixo para unir e enraizar a “autonomia popular” e a “deliberação e ação conjunta em todos os rincões do país”, para “trazê-las de volta à Colômbia”, como reza a declaração final.

No calor das cozinhas e nas festas noturnas começou a tornar-se realidade o objetivo deste congresso: “Que o país de baixo legisle. Que os povos mandem. Que a população ordene o território, a economia e a forma de governar. Que caminhe a palavra”. “Não esperamos grande coisa dos congressistas e governantes”, pode se ler na declaração Palavra do Congresso dos Povos. Seis anos depois daquela colorida e tumultuosa marcha para Cali, a palavra indígena está tecendo corações com outras palavras no que provavelmente seja o começo de outra história dos de baixo na Colômbia.

Raúl Zibechi é jornalista uruguaio editor do semanário Brecha, uma das publicações de esquerda mais tradicionais da América Latina.

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