Abriu a porta. Os olhos explicitamente verdes diziam querer alguma coisa. É sempre este o momento decisivo da carona: o primeiro olho no olho diz a intenção de quem pára o carro a uma desconhecida, sozinha ou acompanhada. E diz também, por conseqüência, se a situação deve ser estimulada ou contornada. Esta deveria ser contornada. Os olhos esperavam alguma coisa. A primeira reação, após o primeiro contato, foi desviar o olhar. Não de modo a transparecer desonestidade ou insegurança, mas com arte, apenas representando uma negativa ao pedido implícito.
-Boa noite. Lagoa?
-Vou até a Armação. Passo por lá.
-Ah, perfeito! Entro, fecho a porta, ponho o cinto.
-Obrigada por parar.
-Consegue sempre carona fácil? - Sotaque manezinho.
-Sim, mas esses dias tem sido mais complicado, não sei porque.
-Ah, o medo! Eu mesmo não dou carona nunca.
Outra troca leve de olhares, e é quando eu reparo no restante do sujeito. Gordo, careca, queixo duplo, papa dupla, mas simpático, apesar daqueles olhos que de tão verdes chegavam a incomodar. Lascivos demais. Daí se seguiu uma conversa casual, que se repete na maioria das vezes. O que você faz, de onde vem, pra onde vai.
-E você? Trabalha com o quê?
-Sou marinheiro particular.
- Disse isso já esperando a surpresa, que obviamente expressei, e sorriu muito.
- É. Ninguém conhece.
-E o que exatamente faz um marinheiro particular?
- Tive medo de transparecer estranhamento demais na voz. Porque embora não seja uma profissão que se veja todo dia, não é difícil imaginar o que faz um marinheiro particular, oras!
-Tu imaginas que daqui a algum tempo vais ser uma advogada bem sucedida, com um padrão razoavelmente bom de vida e decides não te dedicares somente ao trabalho e à família, mas também ao melhor dos hobbies: o mar. Economizas um bocado e compras uma lancha ou iate. Mas claro que tu, como advogada, não vais saber pilotar um barco. Que que tu fazes?
-Contrato você.
-Pois é exatamente isso o que eu faço.
-E há quanto tempo?
-Ih, faz anos! Já nem me lembro mais quando foi que eu chutei o balde.
-Ah, fazia alguma outra coisa antes, então.
-Fazia, mas estava me matando, sabes? Era o tempo em que eu afogava todas as frustrações no boteco. Ficasse eu no lugar e já estava morto a essa altura. Eu era bancário, sabes? Na época em que bancário dava ainda um bom dinheiro; pagavam bem, tinha garantias. Mas não gostava daquilo não. Ih! Foi daí que eu resolvi largar o banco pra ir trabalhar com barco de pesca.
-Barco de pesca? A família não deve ter gostado nada.
-Gostar? Queriam me internar, isso sim. Me disseram tanto que eu estava ficando louco que eu comecei a achar que estava mesmo. Minha mulher, (agora ex-mulher, mas na época ainda era mulher), dizia: “Pensa bem, Mano. O maior peso que tu pegas agora é o da caneta, pra assinar algum papel. Tu vais agora puxar rede? Como é que é isso? Não estás vendo que isso não vinga?”. Daí eu comecei a pensar que estava ficando doido mesmo, sabes? Porque, oras, era um emprego que pagava bem, e eu tinha conta, mulher, filhos e tudo. Mas não deu pra continuar, e eu saí do banco. Com o tempo, passaram a dizer cada vez menos que não iria dar certo, até que pararam, porque deu. Pelo menos hoje eu não sou alcoólatra nem deprimido. Ainda trabalhei um tempo com barco de pesca. Sempre perto do mar, porque longe não dá pra ficar. E hoje eu sou marinheiro particular.
-Nossa!
-A gente tem uma capacidade de transformação que tu nem imaginas, menina. A gente se adapta melhor que qualquer outro bicho. O trabalho é capaz de quase tudo quando se trata de transformar.
-Olha só, que história! Ah, eu fico logo aqui, onde você puder encostar. Moro aqui no Canto.
-E como é mesmo teu nome?
-Joana. E o seu?
-Bartoldo, mas pode me chamar de Mano.
-Nome de marinheiro.
-Particular! E então, Joana, deixa seu telefone pra gente conversar qualquer dia.
-Fazemos assim: na próxima carona, quem sabe? Tudo certo?
-Tudo certo. Até mais. Sorriu.
Desci, fechei a porta, percebi o sorriso e sorri de volta. Cruzei as duas pistas que sobem o morro da Lagoa. Já estava quase dobrando a esquina pros Araçás e o carro ainda estava ali, parado, os grandes olhos verdes me olhando. Saiu quando viu que de fato eu iria cruzar a esquina. Buzinou e acenou, no que retribuí ainda sorrindo.
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