A contrarreforma ambiental
Marcelo Pedroso Goulart - Janeiro 2012
O projeto de Código Florestal em tramitação no Congresso Nacional entra na cena política brasileira contemporânea como reação ao ainda incipiente programa de implementação da cidadania socioambiental no campo, levado avante por movimentos sociais, agências ambientais e instituições do sistema de Administração da Justiça. A avançada legislação ambiental brasileira tem servido de instrumento de indução de políticas públicas transformadoras.
Beneficiárias de um padrão de produção agrícola insustentável e incomodadas com a aplicação dessa legislação democratizante, as forças políticas representadas pela grande propriedade monocultora e pela indústria agroquímica pretendem obstaculizar esse movimento com a apresentação, nas instâncias legislativas, de projetos de lei que revoguem as conquistas da cidadania. Trata-se de uma investida contrarreformista, que tem como alvo preferencial a legislação ambiental. A aprovação do Código Florestal do Estado de Santa Catarina, em 2009, e a proposta de mudança do Código Florestal nacional vão nessa linha.
O projeto democrático da Constituição de 1988 e sua dimensão ambiental
Ao refundar em bases democráticas a República do Brasil em 1988, os Constituintes delinearam projeto de sociedade orientado por dois macroprincípios: o princípio do respeito à dignidade da pessoa humana (art. 1º da Constituição) e o princípio da transformação social (art. 3º da Constituição). Em ambos, manifesta-se de forma contundente a dimensão ambiental desse projeto.
Pelo primeiro macroprincípio, o ser humano é reconhecido como sujeito de direitos fundamentais, cuja obrigatoriedade de respeito e concretização pelo Estado, pela sociedade e pelas outras pessoas objetiva garantir o pleno desenvolvimento da personalidade e sadia qualidade de vida.
Pelo segundo, nós, brasileiros, como governantes e como cidadãos, estamos comprometidos com a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, na qual o desenvolvimento deve estar necessariamente voltado à erradicação da pobreza e da marginalização, à redução das desigualdades sociais e regionais e à promoção do bem comum, o que implica criação de condições sociais que permitam a todos, sem exceção, garantia de pleno desenvolvimento e sadia qualidade de vida.
Sadia qualidade de vida pressupõe, entre outras coisas, a utilização racional dos recursos naturais e o equilíbrio ecológico do meio ambiente. Pressupõe a efetividade do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, passando pela preservação e restauração dos processos ecológicos essenciais; pela preservação da diversidade e da integridade do patrimônio genético do País; pela proteção da fauna e da flora; pela definição, em todas as unidades da Federação, de espaços territoriais a serem especialmente protegidos, vedando-se qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção (art. 225 da Constituição).
O projeto de Código Florestal e a Ciência
A Constituição prevê, como um dos instrumentos de garantia da efetividade do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, a definição de espaços territoriais especialmente protegidos, ou seja, de áreas geográficas que, em razão de seus atributos ambientais, sejam de utilização restrita e sustentada ou imunes às intervenções antrópicas.
As áreas de preservação permanente e de reserva legal, objeto de regulamentação pelo Código Florestal, são espécies de espaços territoriais especialmente protegidos. Merecem proteção especial porque, nos espaços que ocupam, os seus componentes bióticos e abióticos, em interação, cumprem funções ecológicas indispensáveis para a persistência de todas as formas de vida, ou seja, cumprem diversas funções imprescindíveis para o desenvolvimento de processos ecológicos essenciais. As áreas de preservação permanente manifestam-se na paisagem em posições estratégicas para o cumprimento de suas principais funções: a proteção hídrica, edáfica e da biodiversidade. As reservas legais, como espaços que visam precipuamente a preservação da rica biodiversidade brasileira, devem estar distribuídas de forma equlibrada pelo território nacional, para contemplar as comunidades biológicas que integram todos os biomas, centros de endemismo e ecossistemas.
A intervenção humana pode prejudicar, descaracterizar ou até mesmo impedir o cumprimento das funções ecológicas que são próprias desses meios, comprometendo o equilíbrio ecológico e, consequentemente, colocando em risco a persistência da vida. Por isso, sua admissão dá-se em casos excepcionais.
Os estudos científicos já comprovaram, entre outras coisas, que as áreas de preservação permanente e de reserva legal cumprem funções distintas, embora muitas vezes complementares e, por isso, não se confundem e nem uma pode substituir outra. Para cumprirem as suas múltiplas funções ecológicas, devem estar integralmente recobertas com vegetação nativa e a faixa de proteção ripária deve ser contada a partir do leito maior, pois possui fisionomia e funções distintas das de várzeas e planícies de inundação.
No que diz respeito aos processos ecológicos essenciais, o objeto da regulamentação jurídica está dado pela natureza e é, apenas, constatado pela Ciência. Imprescindível, pois, o diálogo permanente entre a comunidade político-jurídica e a comunidade científica como forma de qualificar os processos de produção e aplicação das leis ambientais.
O discurso mistificador
A discussão sobre o projeto de mudança do Código Florestal realizada no Congresso Nacional não observou tal imperativo. Ao contrário. Conquanto distantes da realidade, dois dos principais argumentos que nortearam a concepção vitoriosa no texto aprovado na Câmara e no Senado foram exaustivamente vocalizados pela bancada ruralista, galvanizando, com aparência de verdade, a posição da maioria parlamentar.
O primeiro deles aponta para a necessidade de expansão da fronteira agrícola como forma de garantir o aumento da produção de alimentos e de agroexportáveis. A aplicação do Código Florestal vigente seria um obstáculo ao desenvolvimento da agricultura brasileira. Nada mais falso. Em primeiro lugar, porque hoje o ganho de produtividade não mais se dá pela ampliação de área plantada, mas, sim, pela adoção de tecnologias avançadas. Em segundo lugar, porque a agricultura pode praticamente dobrar a sua área de produção com a ocupação de áreas de elevada aptidão agrícola hoje destinadas à pecuária extensiva. Sabe-se que a pecuária pode desenvolver-se pela intensificação e liberar áreas para a agricultura. O desenvolvimento da agricultura brasileira não depende da expansão da fronteira agrícola, de novos desflorestamentos e, tampouco, da ocupação de áreas destinadas à preservação permanente e à reserva legal.
Pelo segundo argumento, a aplicação do Código Florestal de 1965 inviabiliza a produção do pequeno agricultor. Os especialistas afirmam que a legislação vigente possui mecanismos suficientes ao atendimento das necessidades da agricultura familiar. Os assentamentos agroflorestais da reforma agrária provam isso.
O retrocesso
O projeto em debate no Congresso Nacional reduz os padrões de proteção ambiental, descaracterizando as áreas de preservação permanente e a reserva legal como espaços territoriais especialmente protegidos para transformá-los, preferencialmente, em espaços de produção. Inúmeros enunciados normativos previstos no texto do projeto transformam aquilo que seria exceção em regra geral, ou seja, permitem a ocupação de áreas ambientalmente sensíveis por atividades produtivas intensivas, comprometendo o cumprimento de suas funções ecológicas e inviabilizando o desenvolvimento de processos ecológicos essenciais. Assim, por exemplo, a admissão de atividades de produção nas chamadas “áreas consolidadas”; a possibilidade de recomposição arbórea da reserva legal com espécies exóticas; o cômputo das áreas de preservação permanente na reserva legal; a contagem do marco inicial das áreas ripárias a partir da calha do leito regular.
Se aprovado esse projeto, o Código Florestal brasileiro transitará do campo do Direito Ambiental para o do Direito Mercantil e sua eventual aplicação violentará o projeto democrático estabelecido na Constituição da República.
----------
Marcelo Pedroso Goulart é promotor de justiça no Estado de São Paulo e ex-presidente do Movimento do Ministério Público Democrático.
Nenhum comentário:
Postar um comentário