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A Monsanto, os mortos de Curuguaty e o julgamento político de Lugo
Foram
muitos os sinais que antecederam o golpe contra o presidente Fernando
Lugo: a maneira como ocorreu o conflito em Curuguaty que deixou 17
mortos, a presença de franco-atiradores entre os camponeses, a campanha
via jornal ABC Color contra os funcionários do governo que se opunham à
liberação das sementes de algodão transgênico da Monsanto, a convocação
de um tratoraço nacional com bloqueio de estradas para o dia 25. O
jornalista paraguaio Idilio Méndez Grimaldi conta essa história e
adverte: "os mortos de Curugaty carregam uma mensagem para a região,
especialmente para o Brasil".
Quem
está por trás desta trama tão sinistra? Os impulsionadores de uma
ideologia que promove o lucro máximo a qualquer preço e quanto mais,
melhor, agora e no futuro. No dia 15 de junho de 2012, um grupo de
policiais que ia cumprir uma ordem de despejo no departamento de
Canindeyú, na fronteira com o Brasil, foi emboscado por
franco-atiradores, misturados com camponeses que pediam terras para
sobreviver. A ordem de despejo foi dada por um juiz e uma promotora para
proteger um latifundiário. Resultado da ação: 17 mortos, 6 policiais e
11 camponeses, além de dezenas de feridos graves. As consequências: o
governo frouxo e tímido de Fernando Lugo caiu com debilidade ascendente e
extrema, cada vez mais à direita, a ponto de ser levado a julgamento
político por um Congresso dominado pela direita.
Trata-se
de um duro revés para a esquerda e para as organizações sociais e
campesinas, acusadas pela oligarquia latifundiária de instigar os
camponeses. Representa ainda um avanço do agronegócio extrativista nas
mãos de multinacionais como a Monsanto, mediante a perseguição dos
camponeses e a tomada de suas terras. Finalmente, implica a instalação
de um cômodo palco para as oligarquias e os partidos de direita para seu
retorno triunfal nas eleições de 2013 ao poder Executivo.
No
dia 21 de outubro de 2011, o Ministério da Agricultura e Pecuária,
dirigido pelo liberal Enzo Cardozo, liberou ilegalmente a semente de
algodão transgênico Bollgard BT, da companhia norteamericana de
biotecnologia Monsanto, para seu plantio comercial no Paraguai. Os
protestos de organizações camponesas e ambientalistas foram imediatos. O
gene deste algodão está misturado com o gene do Bacillus thurigensis,
uma bactéria tóxica que mata algumas pragas do algodão, como as larvas
do bicudo, um coleóptero que deposita seus ovos no botão da flor do
algodão.
O
Serviço Nacional de Qualidade e Saúde Vegetal e de Sementes (Senave),
instituição do Estado paraguaio dirigida por Miguel Lovera, não
inscreveu essa semente nos registros de cultivares pela falta de parecer
do Ministério da Saúde e da Secretaria do Ambiente, como exige a
legislação.
Campanha midiática
Nos
meses posteriores, a Monsanto, por meio da União de Grêmios de Produção
(UGP), estreitamente ligada ao grupo Zuccolillo, que publica o jornal
ABC Color, lançou uma campanha contra o Senave e seu presidente por não
liberar o uso comercial em todo o país da semente de algodão transgênico
da Monsanto. A contagem regressiva decisiva parece ter iniciado com uma
nova denúncia por parte de uma pseudosindicalista do Senave, chamada
Silvia Martínez, que, no dia 7 de junho, acusou Lovera de corrupção e
nepotismo na instituição que dirige, nas páginas do ABC Color. Martínez é
esposa de Roberto Cáceres, representante técnico de várias empresas
agrícolas, entre elas a Agrosan, recentemente adquirida por 120 milhões
de dólares pela Syngenta, outra transnacional, todas sócias da UGP.
No
dia seguinte, 8 de junho, a UGP publicou no ABC uma nota em seis
colunas: “Os 12 argumentos para destituir Lovera”. Estes supostos
argumentos foram apresentados ao vice-presidente da República,
correligionário do ministro da Agricultura, o liberal Federico Franco,
que naquele momento era o presidente interino do Paraguai, em função de
uma viagem de Lugo pela Ásia.
No
dia 15, por ocasião de uma exposição anual organizada pelo Ministério
da Agricultura e Pecuária, o ministro Enzo Cardoso deixou escapar um
comentário diante da imprensa que um suposto grupo de investidores da
Índia, do setor de agroquímicos, cancelou um projeto de investimento no
Paraguai por causa da suposta corrupção no Senave. Ele nunca esclareceu
que grupo era esse. Aproximadamente na mesma hora daquele dia, ocorriam
os trágicos eventos de Curuguaty.
No
marco desta exposição preparada pelo citado Ministério, a Monsanto
apresentou outra variedade de algodão, duplamente transgênica: BT e RR,
ou Resistente ao Roundup, um herbicida fabricado e patenteado pela
transnacional. A pretensão da Monsanto é a liberação desta semente
transgênica no Paraguai, tal como ocorreu na Argentina e em outros
países do mundo.
Antes
desses fatos, o diário ABC Color denunciou sistematicamente, por
supostos atos de corrupção, a ministra da Saúde, Esperanza Martínez, e o
ministro do Ambiente, Oscar Rivas, dois funcionários do governo que não
deram parecer favorável a Monsanto.
Em
2001, a Monsanto faturou 30 milhões de dólares, livre de impostos
(porque não declara essa parte de sua renda), somente na cobrança de
royalties pelo uso de sementes de soja transgênica no Paraguai. Toda a
soja cultivada no país é transgênica, numa extensão de aproximadamente 3
milhões de hectares, com uma produção em torno de 7 milhões de
toneladas em 2010.
Por
outro lado, na Câmara de Deputados já se aprovou o projeto de Lei de
Biossegurança, que cria um departamento de biossegurança dentro do
Ministério da Agricultura, com amplos poderes para a aprovação para
cultivo comercial de todas as sementes transgênicas, sejam de soja, de
milho, de arroz, algodão e mesmo algumas hortaliças. O projeto prevê
ainda a eliminação da Comissão de Biossegurança atual, que é um ente
colegiado forma por funcionários técnicos do Estado paraguaio.
Enquanto
transcorriam todos esses acontecimentos, a UGP preparava um ato de
protesto nacional contra o governo de Fernando Lugo para o dia 25 de
junho. Seria uma manifestação com máquinas agrícolas fechando estradas
em distintos pontos do país. Uma das reivindicações do chamado
“tratoraço” era a destituição de Miguel Lovera do Senave, assim como a
liberalização de todas as sementes transgênicas para cultivo comercial.
As conexões
A
UGP é dirigida por Héctor Cristaldo, apoiado por outros apóstolos como
Ramón Sánchez – que tem negócios com o setor dos agroquímicos -, entre
outros agentes das transnacionais do agronegócio. Cristaldo integra o
staff de várias empresas do Grupo Zuccolillo, cujo principal acionista é
Aldo Zuccolillo, diretor proprietário do diário ABC Color, desde sua
função sob o regime de Stroessner, em 1967. Zuccolillo é dirigente da
Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP).
O
grupo Zuccolillo é sócio principal no Paraguai da Cargill, uma das
maiores transnacionais do agronegócio no mundo. A sociedade entre os
dois grupos construiu um dos portos graneleiros mais importantes do
Paraguai, denominado Porto União, a 500 metros da área de captação de
água da empresa de abastecimento do Estado paraguaio, no Rio Paraguai,
sem nenhuma restrição.
As
transnacionais do agronegócio no Paraguai praticamente não pagam
impostos, mediante a férrea proteção que tem no Congresso, dominado pela
direita. A carga tributária no Paraguai é apenas de 13% sobre o PIB.
Cerca de 60% do imposto arrecadado pelo Estado paraguaio é via Imposto
sobre Valor Agregado (IVA). Os latifundiários não pagam impostos. O
imposto imobiliário representa apenas 0,04% da carga tributária, cerca
de 5 milhões de dólares, segundo estudo do Banco Mundial, embora a renda
do agronegócio seja de aproximadamente 30% do PIB, o que representa
cerca de 6 bilhões de dólares anuais.
O
Paraguai é um dos países mais desiguais do mundo. Cerca de 85% das
terras, aproximadamente 30 milhões de hectares, estão nas mãos de 2% de
proprietários, que se dedicam à produção meramente para exportação ou,
no pior dos casos, à especulação sobre a terra. A maioria desses
oligarcas possui mansões em Punta del Este ou em Miami e mantém
estreitas relações com transnacionais do setor financeiro, que guardam
seus bens mal havidos nos paraísos fiscais ou tem investimentos
facilitados no exterior. Todos eles, de uma ou outra maneira, estão
ligados ao agronegócio e dominam o espectro político nacional, com
amplas influências nos três poderes do Estado. Ali reina a UGP, apoiada
pelas transnacionais do setor financeiro e do agronegócio.
Os fatos de Curugaty
Curuguaty
é uma cidade na região oriental do Paraguai, a cerca de 200 quilômetros
de Assunção, capital do país. A alguns quilômetros de Curuguaty
encontra-se a fazenda Morombi, de propriedade do latifundiário Blas
Riquelme, com mais de 70 mil hectares nesse lugar. Riquelme provém das
entranhas da ditadura de Stroessner (1954-1989), sob cujo regime
acumulou uma intensa fortuna. Depois, aliou-se ao general Andrés
Rodríguez, que executou o golpe de Estado que derrubou o ditador
Stroessner. Riquelme, que foi presidente do Partido Colorado por muitos
anos e senador da República, dono de vários supermercados e
estabelecimentos pecuários, apropriou-se mediante subterfúgios legais de
aproximadamente 2 mil hectares que pertencem ao Estado paraguaio.
Esta
parcela foi ocupada pelos camponeses sem terra que vinham solicitando
ao governo de Fernando Lugo sua distribuição. Um juiz e uma promotora
ordenaram o despejo dos camponeses, por meio do Grupo Especial de
Operações (GEO), da Polícia Nacional, cujos membros de elite, em sua
maioria, foram treinados na Colômbia, sob o governo de Uribe, para a
luta contra as guerrilhas.
Só
uma sabotagem interna dentro dos quadros de inteligência da polícia,
com a cumplicidade da promotoria, explica a emboscada, na qual morreram
seis policiais. Não se compreende como policiais altamente treinados, no
marco do Plano Colômbia, puderam cair facilmente em uma suposta
armadilha montada pelos camponeses, como quer fazer crer a imprensa
dominada pela oligarquia. Seus camaradas reagiram e dispararam contra os
camponeses, matando 11 e deixando uns 50 feridos. Entre os policiais
mortos estava o chefe do GEO, comissário Erven Lovera, irmão do tenente
coronel Alcides Lovera, chefe de segurança do presidente Lugo.
O
plano consiste em criminalizar, levar até ao ódio extremo todas as
organizações campesinas, para fazer os camponeses abandonarem o campo,
deixando-o para uso exclusivo do agronegócio. É um processo doloroso,
“descampesinização” do campo paraguaio, que atenta diretamente contra a
soberania alimentar, a cultura alimentar do povo paraguaio, por serem os
camponeses produtores e recriadores ancestrais de toda a cultura
guarani.
Tanto
o Ministério Público, como o Poder Judiciário e a Polícia Nacional,
assim como diversos organismos do Estado paraguaio estão controlados
mediante convênios de cooperação com a USAID, agência de cooperação dos
Estados Unidos.
O
assassinato do irmão do chefe de segurança do presidente da República
obviamente foi uma mensagem direta a Fernando Lugo, cuja cabeça seria o
próximo objetivo, provavelmente por meio de um julgamento político,
mesmo que ele tenha levado seu governo mais para a direita, tratando de
acalmar as oligarquias. O ocorrido em Curuguaty derrubou Carlos
Filizzola do Ministério do Interior. Em seu lugar, foi nomeado Rubén
Candia Amarilla, proveniente do opositor Partido Colorado, o qual Lugo
derrotou nas urnas em 2008, após 60 anos de ditadura colorada, incluindo
a tirania de Alfredo Stroessner.
Candia
foi ministro da Justiça do governo colorado de Nicanor Duarte
(2003-2008) e atuou como procurador geral do Estado por um período, até o
ano passado, quando foi substituído por outro colorado, Javier Díaz
Verón, por iniciativa do próprio Lugo. Candia é acusado de ter promovido
a repressão contra dirigentes de organizações campesinas e de
movimentos populares. Sua indicação como procurador geral do Estado em
2005 foi aprovada pelo então embaixador dos Estados Unidos, John F.
Keen. Candia foi responsável por um maior controle do Ministério Público
por parte da USAID e foi acusado por Lugo no início do governo de
conspirar para tirá-lo do poder.
Após
assumir como ministro político de Lugo, a primeira coisa que Candia fez
foi anunciar o fim do protocolo de diálogo com os campesinos que ocupam
propriedades. A mensagem foi clara: não haverá conversação, mas
simplesmente a aplicação da lei, o que significa empregar a força
policial repressiva sem contemplação. Dois dias depois de Candia
assumir, os membros do UGP, encabeçados por Héctor Cristaldo, foram
visitar o flamante ministro do Interior, a quem solicitaram garantias
para a realização do tratoraço no dia 25. No entanto, Cristaldo disse
que a medida de força poderia ser suspensa, em caso de sinais favoráveis
para a UGP (leia-se: liberação das sementes transgênicas da Monsanto,
destituição de Lovera e de outros ministros, entre outras vantagens para
o grande capital e os oligarcas), levando o governo ainda mais para a
direita.
Cristaldo
é pré-candidato a deputado para as eleições de 2013 por um movimento
interno do Partido Colorado, liderado por Horacio Cartes, um empresário
investigado em passado recente nos Estados Unidos por lavagem de
dinheiro e narcotráfico, segundo o próprio ABC Color, que foi ecoado por
várias mensagens do Departamento de Estado dos EUA, conforme divulgado
por Wikileaks. Entre elas, uma se referia diretamente a Cartes, no dia
15 de novembro de 2011.
Julgamento político de Lugo
Enquanto
escrevia esse artigo, a UGP (4), alguns integrantes do Partido Colorado
e os próprios integrantes do Partido Liberal Radical Autêntico (PLRA),
dirigido pelo senador Blas Llano e aliado do governo até então,
começaram a ameaçar com a abertura de um processo de impeachment de
Fernando Lugo para destituí-lo do cargo de presidente da República. Lugo
passou a depender do humor dos colorados para seguir como presidente do
país, assim como do de seus aliados liberais, que passaram a ameaçá-lo
com um julgamento político, seguramente buscando mais espaços de poder
(dinheiro) como condição para a paz. O Partido Colorado, aliado a outros
partidos minoritários de oposição tinha a maioria necessária para
destituir o presidente de suas funções.
Talvez
esperassem “os sinais favoráveis” de Lugo que a UGP – em nome da
Monsanto, da pátria financeira e dos oligarcas – estava exigindo do
governo. Caso contrário se passaria à fase seguinte, de interrupção
deste governo que nasceu como progressista e lentamente foi terminando
como conservador, controlado pelos poderes da oposição.
Entre
outras coisas, Lugo é responsável pela aprovação da Lei Antiterrorista,
patrocinada pelos EUA em todo o mundo depois do 11 de setembro. Em
2010, ele autorizou a implementação da Iniciativa Zona Norte, que
consiste na instalação e deslocamento de tropas e civis norteamericanos
no norte da região oriental – no nariz do Brasil – supostamente para
desenvolver atividades a favor das comunidades campesinas.
A
Frente Guazú, coalizão das esquerdas que apoia Lugo, não conseguiu
unificar seu discurso e seus integrantes acabaram perdendo a perspectiva
na análise do poder real, ficando presos nos jogos eleitorais
imediatistas. Infiltrados pelo USAID, muitos integrantes da Frente
Guazú, que participavam da administração do Estado, sucumbiram ao canto
de sereia do consumismo galopante do neoliberalismo. Se corromperam até
os ossos, convertendo-se em cópias vaidosas de novos ricos que
integravam os recentes governos do direitista Partido Colorado.
Curuguaty
também engloba uma mensagem para a região, especialmente para o Brasil,
em cuja fronteira se produziram esses fatos sangrentos, claramente
dirigidos pelos senhores da guerra, cujos teatros de operações estão
montados no Iraque, Líbia, Afeganistão e, agora, Síria. O Brasil está
construindo um processo de hegemonia mundial junto com a Rússia, Índia e
China, denominado BRIC. No entanto, os EUA não recuam na tentativa de
manter seu poder de influência na região. Já está em marcha o novo eixo
comercial integrado por México, Panamá, Colômbia, Peru e Chile. É um
muro de contenção aos desejos expansionistas do Brasil na direção do
Pacífico.
Enquanto
isso, Washington segue sua ofensiva diplomática em Brasília, tratando
de convencer o governo de Dilma Rousseff a estreitar vínculos
comerciais, tecnológicos e militares. Além disso, a IV Frota dos EUA,
reativada há alguns anos após estar fora de serviço desde o fim da
Segunda Guerra Mundial, vigia todo o Atlântico Sul, caracterizando um
outro cerco ao Brasil, caso a persuasão diplomática não funcione.
E
o Paraguai é um país em disputa entre ambos países hegemônicos, sendo
ainda amplamente dominado pelos EUA. Por isso, os eventos de Curuguaty
representam também um pequeno sinal para o Brasil, no sentido de que o
Paraguai pode se converter em um obstáculo para o desenvolvimento do
sudoeste do Brasil.
Mas,
acima de tudo, os mortos de Curuguaty representam um sinal do grande
capital, do extrativismo explorador que assola o planeta e aplasta a
vida em todos os rincões da Terra em nome da civilização e do
desenvolvimento. Felizmente, os povos do mundo também vêm dando
respostas a estes sinais da morte, com sinais de resistência, de
dignidade e de respeito a todas as formas de vida no planeta.
(Por Idilio Méndez Grimaldi (*), Carta Maior, 25/06/2012)
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
(*)
Jornalista, pesquisador e analista. Membro da Sociedade de Economia
Política do Paraguai (SEPPY). Autor do livro “Lor Herederos de
Stroessner”.
(**)
Esse artigo foi escrito dias antes da aprovação, no Senado paraguaio,
da abertura do processo de impeachment de Fernando Lugo.
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