quarta-feira, 29 de junho de 2011

RESISTIR é PRECISO: UFSCAR sob ameaça institucional


A Reitoria da UFSCar vem, por meio desta, prestar alguns esclarecimentos à comunidade universitária e, especialmente, compartilhar sua preocupação com os rumos tomados pelo movimento de ocupação do Restaurante Universitário por um grupo de estudantes.
Como deve ser de conhecimento da comunidade, a ocupação iniciou-se no dia 7 de junho, motivada, a princípio, por problema no abastecimento de água da moradia estudantil que foi rapidamente sanado. No entanto, posteriormente, a ocupação foi justificada por uma série de outras reivindicações, as mais diversas possíveis, que vão desde mudanças relacionadas ao próprio RU até a solicitação de contratação imediata de novos docentes e servidores técnico-administrativos.
Desde o primeiro dia da ocupação, membros da Administração Superior da Universidade vêm se reunindo com os estudantes, ouvindo suas reivindicações, alertando sobre os riscos envolvidos na operação do Restaurante Universitário por pessoal não especializado e, também, evidenciando os prejuízos decorrentes da ocupação para a Universidade e para os próprios estudantes, especialmente aqueles contemplados com bolsas-alimentação.
No dia 10 de junho, as reivindicações do grupo de estudantes que ocupa o Restaurante Universitário foram formalizadas em carta encaminhada à Reitoria que, na mesma data, reuniu-se com os alunos para discussão de todas as reivindicações apresentadas, esclarecendo as providências já tomadas e os encaminhamentos em andamento. Outra reunião foi realizada no dia 13 de junho, e a síntese dos esclarecimentos prestados nesses dois encontros foi encaminhada à comunidade universitária em Comunicado do dia 15 de junho.
No entanto, apesar dessas ações, os estudantes continuaram a ocupação e, em prática estranha aos procedimentos de negociação consolidados nesta Instituição, passaram a defender uma flexibilidade da pauta; ou seja, a cada nova reunião apresentavam novas reivindicações. Frente a essa situação e objetivando a resolução do impasse, no mesmo Comunicado de 15/6 a Reitoria reiterou o fato de já ter dado resposta à pauta inicialmente apresentada e informou estar à disposição para a continuidade do debate sobre a Universidade, desde que o Restaurante Universitário fosse desocupado, o que não ocorreu.
Na última quarta-feira, dia 22 de junho, o grupo de estudantes responsável pela ocupação organizou manifestação contra a repressão (provocada pela alegada agressão policial a dois estudantes no dia 8 de junho, em relação à qual a Reitoria também tomou as providências cabíveis, como informado em Comunicado enviado à comunidade no dia 14/6).
Apesar de o mote inicial ser o protesto contra a violência policial, os chamamentos para essa manifestação também passaram a incluir outros itens. A manifestação se dirigiu à Reitoria e desde os seus primeiros instantes foi caracterizada por tratamento bastante desrespeitoso aos dirigentes da Instituição.
O Reitor Targino de Araújo Filho recebeu os estudantes, acompanhado de outros membros da Administração Superior, e reiterou a disponibilidade para a continuidade do diálogo condicionada à desocupação do RU, frente às providências aqui relatadas. No entanto, os estudantes mais uma vez se recusaram a efetuar a desocupação, e alguns continuaram a se dirigir aos membros da Administração de forma inapropriada, pouco condizente com o mote da própria manifestação.
Tal comportamento é especialmente incoerente no seio de um movimento que alega defender a liberdade e os procedimentos democráticos, mas que se recusa a ouvir, faz repetidamente alegações infundadas, não respeita tais procedimentos e ignora os processos democráticos e de decisão coletiva que caracterizam a UFSCar e, historicamente, a diferenciaram entre outras instituições de Ensino Superior.
Assim, compartilhadas aqui essas informações e preocupações, comunicamos ainda que os estudantes responsáveis pela ocupação serão responsabilizados por quaisquer danos causados no Restaurante Universitário durante esse período. Reiteramos também nossa permanente disposição ao diálogo e informamos que iremos sugerir um cronograma para debate dos diversos pontos levantados pelos estudantes, assim que o RU estiver desocupado. E, finalmente, informamos que nesta segunda-feira (27/6) entregamos aos estudantes responsáveis pela ocupação carta pormenorizando os esclarecimentos prestados nas reuniões realizadas, conforme compromisso assumido no último dia 22.
Informativo da Coordenadoria de Comunicação Social da Universidade Federal de São Carlos.
Telefones (16) 3351-8119. Escreva para contato@comunicacao.ufscar.br.
Sistema de Apoio à Comunicação Integrada (SACI) – Copyright© 2011 UFSCar – CCS

A esquerda fora do eixo

mobilizações em São Paulo demonstram a fragilidade prática e teórica da esquerda num cenário de ascensão e transformação econômica. Por Passa Palavra (aqui)


I. 2011, São Paulo em cinco mobilizações
Do início do ano até abril houve grandes manifestações da luta contra o aumento da tarifa de ônibus em São Paulo. Diferentemente do que ocorreu em 2010 e nos anos anteriores, o público mobilizado passou de 4 mil pessoas e, ao invés de esvaziarem, os atos mantiveram-se cheios e permitiram realizar ações que antigamente chamaríamos de radicais, ou mesmo de ousadas, como a ocupação de um terminal de ônibus na região central e a paralisação de um dos sentidos da Avenida 23 de Maio – uma das maiores da capital do estado. A análise informal de alguns militantes sobre esse “fenômeno” baseava-se nos seguintes elementos: Facebook (com a confirmação de milhares de pessoas nos eventos que chamavam para as manifestações), repressão policial, o próprio valor da passagem (R$ 3,00) e a reunião das forças político-partidárias de oposição na cidade aos governos estadual e municipal. O ciclo de 2011 de lutas contra o aumento da tarifa foi encerrado pelo Movimento Passe Livre-SP, por acreditar que seria a hora de impulsionar uma luta mais abrangente que criticasse estruturalmente o sistema de transporte, com a bandeira da tarifa zero. Desse episódio, os militantes refletiram que havia uma “nova juventude” mobilizada: de classe média, estudantil, ligada nas mídias sociais.
antifascistaEm abril, após uma entrevista para programa de TV, “Custe o Que Custar”, o CQC, do jornalista Marcelo Tas, levantou-se a polêmica com o deputado federal e militar da reserva Jair Bolsonaro e seu discurso pró-ditadura e moralmente conservador. Durante aquela semana, a polêmica matéria repercutiu pelas mídias sociais, que pressionaram uma cassação por quebra de decoro parlamentar. Em apoio, grupúsculos da extrema-direita marcaram um ato em defesa ao deputado e, espontaneamente, indivíduos atomizados da esquerda convocaram um ato antifascista com o objetivo de impedir a realização da manifestação. O que foi testemunhado pelos que compareceram nada mais foi que um grupo numericamente insignificante de valentões fantasiados de fascistas. Reencenando a Batalha da Praça da Sé, em que os integralistas foram confrontados nas ruas do centro paulista pelos anarquistas, colocou-se em ação um teatro da luta antifascista: palavras de ordem de um lado e de outro. O ato reuniu cerca de duas centenas de pessoas. Quem de fato protagonizou alguma coisa foi o próprio Estado de Direito, o qual deteve alguns membros dos skinheadspor serem procurados pela Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi).
Em maio o transporte voltou a ser pauta na cidade. Moradores de Higienópolis [1] organizaram um abaixo-assinado com menos de 5 mil assinaturas para impedir a construção de uma estação da linha amarela do metrô no bairro. Segundo os moradores, a estação faria com que “gente diferenciada” passasse a frequentar a região. Espontaneamente, indivíduos atomizados e blogs “antielitismo” divulgaram o “Churrascão da gente diferenciada”, a ser realizado nas ruas de Higienópolis. Ao menos virtualmente, o evento marcado no Facebook teve mais de 60 mil pessoas com a presença confirmada. No sábado, dia do “churrascão”, cerca de mil pessoas compareceram e, segundo alguns manifestantes, ao todo 2 mil passaram pelo local.
churrascaoO campo social presente ultrapassou os limites daquele ativista-militante e político-partidário, isto é, se expandiu com pessoas que não participavam das lutas pelo transporte público. No entanto, o caráter pouco contestatório era evidente. Devido à pressão dos manifestantes, o governo estadual voltou atrás e decidiu construir a estação na rica região da cidade, a qual já possui acesso a três outras estações. Assim, o grande mote de revolta dessa manifestação lúdica foi o próprio diagnóstico de quão arcaica e antiquada é a elite de Higienópolis, mas, no limite, não se colocou a questão – essa sim crucial – da própria lógica elitista da construção do metrô em São Paulo, que prioriza o atendimento às regiões centrais e exclui as regiões periféricas. Tornou-se assim não uma manifestação “antielite” ou por transporte público para todos, mas contra essa elite arcaica.
Ainda em maio ocorreu uma nova mobilização. Desde 2004, indivíduos e coletivos pró-descriminalização das drogas – ou ainda antiproibicionistas – convocaram a “Marcha da Maconha” e, de modo análogo aos anos anteriores, a marcha foi proibida pela Justiça por apologia ao uso de drogas e a Polícia Militar reprimiu os manifestantes. Por conta disso, no mesmo dia convocou-se na porta da delegacia [esquadra] uma nova marcha, agora contra a violência sofrida. Logo após esse anúncio, o coletivo Fora do Eixo (FdE) entrou em contato com os organizadores para integrar a articulação da próxima marcha.
Entre 21 e 27 de maio ocorreram duas reuniões presenciais. Na primeira lançou-se o nome do ato, que passou a se chamar “Marcha da Liberdade” e não mais “Contra a repressão policial”. Na segunda reunião, no Studio SP – uma casa de show administrada por Alexandre Youssef [2] –, Pablo Capilé, articulador do FdE, assumiu as tarefas relacionadas à comunicação da manifestação, como transmissão online, e seu coletivo também arcou com os custos das flores que seriam distribuídas no dia. Capilé ainda mencionou a possibilidade de patrocínio da Coca-Cola à marcha; segundo seu argumento, hoje em dia as empresas buscam contato direto com os grupos e movimentos sem que seja necessário expor as suas marcas. De imediato os presentes ligados ao coletivo Desentorpecendo a Razão (DAR) e Movimento Passe Livre discordaram de tal patrocínio.
Uma das pautas impulsionada a partir da repressão pelos movimentos e coletivos de esquerda foi a promoção de um projeto de lei para proibir o uso de armas “menos letais” em manifestações. Pretende-se que seja aprovado um projeto semelhante ao da Argentina. O coletivo FdE, Cláudio Prado (da Casa de Cultura Digital), e membros da rede MobilizaCultura discordaram que fosse necessário pautar qualquer coisa que não fosse a “própria ideia de liberdade”. Esta foi a maneira encontrada para neutralizar politicamente a Marcha.
marcha-liberdade-11-hg-350x248No dia 28 de maio, a Marcha da Liberdade agregou movimentos como GLBT, Movimento Passe Livre, Marcha da Maconha, organizações políticas e milhares de indivíduos. Os otimistas estimam 10 mil pessoas, já a polícia calculou a presença de 4 mil manifestantes e na transmissão online a cobertura feita por Bruno Torturra, jornalista da Trip, foi acompanhada por cerca de 2 mil pessoas. Um novo ato da Marcha da Liberdade foi convocado para 18 de junho, dessa vez de caráter nacional e, no dia 15 de junho, o Supremo Tribunal Federal julgou e autorizou a realização da “Marcha da Maconha”.
Dessa série de manifestações e atos, extrai-se que as mídias sociais – principalmente o Facebook e oTwitter – mobilizaram conjunturalmente novos setores da classe média, mas, por outro lado, houve também um caráter diferenciado da pauta tradicional dos movimentos sociais e da esquerda em geral. A pauta genérica de algumas delas (e mesmo neutra) ou de grande relação com os direitos individuais – como explicitamente no caso da descriminalização das drogas e da liberdade de expressão – tem possibilitado a aproximação de elementos da classe política – tanto de esquerda como de direita [3] – e também de novas empresas e ONGs com foco no marketing virtual, na publicidade e na cultura.
II. O coletivo Fora do Eixo
A experiência precursora ao Fora do Eixo ocorreu em 2000 com o Espaço Cubo – “a cultura que você não vê na TV” –, fundado por Pablo Santiago Capilé, 31 anos. Na época estudante de publicidade e marketing da Universidade de Cuiabá, Capilé incentivava as bandas da cidade organizando festivais e, assim, formando um mercado cultural independente [4]. Com o crescimento da organização alugaram uma casa de show e, inspirados no conceito de economia solidária de Paul Singer, criaram uma moeda baseada no trabalho envolvido na produção dos eventos, o Cubo Card.
Pontos do CfE - Trip 2011
Pontos do CfE - Trip 2011
Num novo fôlego para ampliar a rede, no final de 2005, Capilé formou o Fora do Eixo, um coletivo de gestores da produção cultural independente com o objetivo de promover festivais com intercâmbio de bandas e outras expressões artísticas e contando com a articulação de quatro cidades: Cuiabá, Rio Branco, Uberlândia e Londrina. Diferentemente da produção culturalmainstream, o coletivo estimula a cultura fora do eixo Rio-São Paulo. Hoje o Fora do Eixo possui 57 coletivos espalhados pelo país. Segundo a organização, eles possuem a capacidade de realizar 5 mil shows por ano e em mais de 100 cidades. Em seu catálogo figuram algumas estrelas da música independente da atualidade como o rapper Emicida e as bandas Macaco Bong, Mombojó e Vanguart. O organograma interno do Circuito Fora do Eixo pode ser visto aqui.
Desde o início de 2011, membros do coletivo de Cuiabá e Uberlândia se mudaram para São Paulo e inauguraram uma casa no Cambuci como sede do Fora do Eixo – a CAFESP (Casa Fora do Eixo - SP). O aluguel de R$ 4 mil sustenta um espaço para shows, estúdio, salas de reunião e a hospedagem de 18 membros “liberados” que trabalham 24 horas por dia para o coletivo, não recebem salário, mas em troca têm suas despesas pessoais pagas pelos cartões do coletivo; esse investimento individual e comportamental é denominado de se “entregar para a causa” [5].
Atualmente a CAFESP realiza shows todos os domingos com churrasco e cerveja “na faixa”. Mas o principal deste projeto não se trata de festas, conversas e diversão. A sede do coletivo no “eixo” (e não fora dele), como se poderia supor, trata-se de uma estratégia para alcançar o mainstream cultural:
Agora, com a trama bem costurada em 112 cidades, a estratégia é ganhar o mainstream, atrair artistas com carreiras mais consolidadas e criar um pólo para atrair gente, dinheiro e oportunidades. Em parceria com o Studio SP, principal palco da cidade para novos músicos, já ganharam as noites de terça-feira para agendar bandas do Brasil e da América Latina.” [6]
Casa Fora do Eixo - SP: em breve, no Distrito Federal
Casa Fora do Eixo - SP: em breve, no Distrito Federal
Para sustentar todo esse recurso material e projeto político-cultural, há uma constante pesquisa de editais para financiamentos públicos e privados combinada com a elaboração e envio de projetos para captação dos recursos neles disponibilizados. Em 2010 inscreveram-se em cerca de 125 editais e, com mais de 30 aprovados, captaram aproximadamente R$ 2 milhões para os projetos (festivais de música, de cinema, de economia solidária, etc.) e R$ 300 mil para as despesas do “institucional” [7]. Um outro aspecto interessante é que eles possuem diversos tipos de cadastro jurídico: associações culturais, empresas, ONGs, casas noturnas. No total são 57 CNPJs [número fiscal] a serviço do FdE, uma fluidez que permite um amplo leque de atuação dentro dos negócios. Além dos editais há também propostas comerciais para emissoras de rádio como a OI FM.
O Fora do Eixo se constituiu e articulou através do programa Cultura Viva do Ministério da Cultura, na gestão do ex-ministro-cantor Gilberto Gil e Juca Ferreira. E fora do governo encontrou o suporte das organizações, empresas e indivíduos que orbitam a “cultura digital” [8].
III. Os embates no Ministério da Cultura
O programa Cultura Viva realizou a distribuição de recursos pelos Pontos e Pontões de Cultura [9], numa parceria direta organizações-governo para fazer cultura. A mudança nas gestões Gil e Juca transformou um Ministério de pequeno orçamento em algo relevante no cenário cultural, com a possibilidade de alteração da Lei do Direito Autoral. No artigo “A economia criativa e a economia social da cultura“, Pablo Ortellado descreve quatro grandes mudanças que ocorreram no Ministério durante esse período: reconhecimento das mudanças das novas tecnologias, política cultural para todos os atores da cadeia produtiva, direito autoral como uma garantia de acesso aos bens culturais e o investimento nos novos modelos de negócios.
Longe de ser uma política de integração nacional através da cultura para forjar a identidade do povo brasileiro presente em outros momentos da história brasileira, o objetivo dos Pontos de Cultura foi estimular uma cadeia de produtores culturais a se intercomunicarem via novas tecnologias para estimular a diversidade cultural brasileira. Ao invés da repetição e massificação da indústria cultural denunciada pelos frankfurtianos, dessa forma haveria a produção “genuína” de cultura, nos quatro cantos do país, isto é, em tese, novos mercados e mais produtores que não precisariam da infra-estrutura produtiva das transnacionais da cultura e dos oligopólios culturais regionais. A prospecção de cultura num primeiro momento abriria a oportunidade para um segundo em que ela entraria na esteira da exportação internacional inserindo a produção cultural brasileira no mercado sul-sul, o que de fato não chegou a ocorrer mas alia-se assim ao pensamento de desenvolvimento nacional do governo Lula.
Campanha pelo Creative Commons no Ministério da Cultura
Campanha pelo Creative Commons no Ministério da Cultura
No entanto, com a mudança no Ministério da Cultura, a ministra Ana Buarque de Hollanda tem confrontado as decisões das últimas gestões, como a retirada do logo do Creative Commons, a paralisação dos editais e premiações, e a reforma da Lei do Direito Autoral. Desta forma, acena para os gestores das transnacionais da cultura e dos oligopólios culturais regionais.
A mudança política tem fechado a porta para os recursos dos pontos de cultura [10] e para as mudanças na Lei do Direito Autoral, as quais beneficiariam o modelo de negócios adotado pelas organizações parceiras e o próprio Fora do Eixo. Em resposta foi fundado o “Partido da Cultura”, o PCult, uma organização suprapartidária contra a ministra Ana Buarque, pela retomada e “continuidade das políticas do Gilberto Gil” e também o MobilizaCultura, uma “rede das redes” para “propor políticas no campo da cultura que radicalizem a democracia” [11].
Para essas organizações do campo da cultura digital, a gestão de Ana Buarque, e num aspecto geral o governo Dilma, estão sendo um “retrocesso das conquistas”. Por outro lado, a prática realizada anteriormente por algumas organizações e coletivos reencena o patrimonialismo, que um entrevistado nos descreve:
Apesar do discurso e da estética anarquistas de muitos, e da adoção de organizações horizontais, como redes e coletivos enquanto forma de organização, a apropriação do Estado – seus recursos e estruturas – é umas das principais práticas do Fora do Eixo. Já enraizados no aparelho do Estado, principalmente no MinC [Ministério da Cultura] mas não só, participam da elaboração dos editais para projetos culturais e de novos tipos de políticas públicas, como os de promoção do uso de softwares livres e da consolidação da Economia Solidária, cuja articulação entre essas tecnologias e o Estado é de criação e exclusividade deles. Assim, ao incorporarem ao Estado (e não só aos governos) a necessidade de políticas nestas áreas, garantem também a exclusividade na apropriação dos recursos destinados a estas mesmas políticas. O interessante é que por fazerem tudo isso usando de estruturas informais e completamente diferentes das que as organizações político-partidárias e tradicionais grupos empresariais adotam para os mesmo propósitos, é praticamente impossível para um observador desatento ou viciado nas velhas estruturas identificar e combater o novo sujeito formado por este coletivo (ou rede). Outra característica é para a maioria dos membros deste coletivo/rede aumentar o próprio poder já é o mais importante, por mais que para um ou para outro o discurso propalado ainda seja o que os movem, e ao invés de executarem os projetos financiados pelos editais que eles mesmos criaram, usam dos recursos e da estrutura do Estado para se articularem por todo o país e garantirem o tempo livre necessário para o desenvolvimento de novos editais, novos discursos, consolidação de práticas e de tecnologias que os mantêm.”
Nessa perspectiva, para estes grupos como Fora do Eixo e Cultura Digital, o embate se dá numa disputa por quem ficará com aquele quinhão do orçamento do Ministério da Cultura, não que o acesso a ele seja para fins diferentes num caso ou em outro.
IV. Cultura livre e os novos modelos de negócios
Os novos modelos de negócios partem da inovação tecnológica e jurídica realizada pelo Software Livre que, quando transportados para o campo da cultura, criam uma produção com a ausência ou flexibilidade do direito autoral, permitindo assim novas formas de geração de valor. Incentivado pelo Fora do Eixo e pelas organizações que compõem a Cultura Digital, o modelo é conceituado como “open business”(negócios abertos ou novos modelos de negócios, em português). A pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas, Oona Castro, define dois tipos de open business: um é fruto do uso do instrumento legal (licenciamento em Creative Commons, por exemplo) – e o outro, uma situação social, na qual há produção em rede com flexibilização da propriedade intelectual como o mercado tecnobrega do Pará. A cultura resultante desse processo é denominada cultura livre.
online-businessopen business é a transformação do modelo de negócios de um mercado monopolista em concorrencial, ou seja, dada a natureza não rival do bem digital e a cópia a custo próximo de zero, o lucro passa a depender da produção material (camisetas, adesivos, etc.) e, principalmente, dos shows; caminha-se assim da renda para os serviços. Para as transnacionais da cultura e os oligopólios culturais regionais, isso significa a modificação do seu papel de intermediador entre mercado e consumidor, e, na dimensão econômica, a extração de lucro por renda é ameaçada.
Advogado e fundador da Creative Commons, Lawrence Lessig afirmou em seus artigos e livros que o termo “cultura livre” (free culture) é análogo ao “livre mercado” (free market). Em seu livro “Free Culture“, Lessig afirma que “a cultura livre que eu defendo nesse livro é um equilíbrio entre anarquia e controle. Uma cultura livre, como um mercado livre, e composta de propriedades. Ela é composta por regras de propriedade e contratos que são garantidos pelo Estado. Porém, da mesma forma que um mercado livre é corrompido se sua propriedade se torna feudal, da mesma forma uma cultura livre pode ser deturpada pelo extremismo nos direitos à propriedade que a definem. Isso é o que eu temo sobre a nossa cultura atual. Foi por causa desse extremismo que esse livro foi escrito.” [12]
Os autores de “Copyright, Copyleft and the Creative Anti-Commons”, Joanne Richardson e Dmytri Kleiner, analisam essa noção de liberdade: “Uma obra é livre na medida em que pode ser comercialmente apropriada, uma vez que a liberdade é definida como a circulação ilimitada de informação e não como algo livre de exploração.” [13]
A ideologia da cultura livre baseia-se na ideia de que a flexibilização da propriedade intelectual com a concorrência proporcionada pelo livre mercado pode estimular a criação e, nesse processo, democratizar a informação e assim as nações caminharem ao progresso. De fato, quanto maior a flexibilização da propriedade intelectual, maior a produtividade dos trabalhadores e, por isso, maior a produção de riqueza a ser apropriada e transformada em mercadoria. Em síntese, a cultura livre é a própria regra do jogo do capitalismo, a apropriação de algo que a classe capitalista não produz.
Dessa forma, a aliança política tática formada por um programa de oposição às transnacionais da cultura e os oligopólios culturais regionais acabou por ocultar a reflexão crítica sobre o que há de surgir em seu lugar.
V. Gestores e a política Fora do Eixo
A principal atividade econômica do Fora do Eixo não é a produção de um produto, mas a comercialização de seus serviços, os quais se especializam através da gerência dos processos da cooperação social, os tais festivais. É por essa razão que se posicionam contra a existência da figura do “intermediador”, isto é, das transnacionais da cultura e os oligopólios culturais regionais e sua relação entre produtores e mercado. No caso da cultura livre trata-se de um conflito no interior da classe capitalista: de um lado, rentistas da cultura e gestores da produção cultural [14] e, do outro lado, gestores da cultura digital e os artesãos da cultura, em que trabalhadores por conta própria na produção de consumo de luxo – de forma a maximizar seus ganhos – posicionam-se ao lado dos segundos sob o embate de produtivos versusimprodutivos. Fora desse debate, há artistas que de certa forma preferem manter-se ao lado da “velha” indústria autoral, talvez não ideologicamente, mas pelo privilégio do circuito de apresentação mainstreamexclusivo para os artistas das majors; uma típica situação de rentista que quer manter o monopólio sobre determinado bem do qual aufere renda. Resta ainda saber onde ficam os proletários que fabricam as mídias na Zona Franca, os que operam o som, os que produzem equipamentos, os que vendem os ingressos etc.
A Teoria da Cauda Longa de Chris Anderson
A Teoria da Cauda Longa de Chris Anderson
Os artistas do catálogo do circuito do Fora do Eixo representam um nicho de mercado em crescimento, mas que são consumidos como novidade, o diferente, e da mesma forma que outro produto, o risco da estagnação do mercado também existe. Mas, com a vinda do coletivo para São Paulo, trata-se de expandir o mercado divulgando a marca “Fora do Eixo” em mobilizações de jovens com o perfil consumidor de seus produtos [15].
O trabalho do FdE é fazer serviços para outros. Fazem realmente como um coletivo e não como proprietários de algo. Mas isso é justamente o que os identifica como gestores: possuir o know-how, o trabalho baseado no conhecimento e na gerência dos processos. Um tipo de trabalho que é possível vender e não ficar sem ele, já que conhecimento é um bem não rival.
Mas além dessas implicações econômicas, na esfera política há outras sobre as quais é necessário refletir. Para o Fora do Eixo a cultura é apenas um pretexto e, atualmente, passaram a buscar meios para chegar na política. Segundo Capilé, o coletivo conseguiu nesses 5 anos “musculatura e capilaridade nacional” e no dia 18, na Marcha da Liberdade, vão mostrar a força da organização.
Em entrevista para a coletânea “Produção Cultural no Brasil”, Capilé responde o que pretendem na política formal:
“Pretendemos criar um ambiente favorável para que daqui há trinta anos o presidente da República possa sair de uma perspectiva ligada a isso que nós estamos construindo. Há trinta anos, ele saiu do sindicato, então podemos tentar criar uma plataforma onde a cultura consiga ganhar mais espaço na agenda.”
Não por acaso, o Fora do Eixo possui instituições semelhantes às do governo como o “Diário Oficial FDE”, “Congresso FDE”, “Casa Civil”, etc. Na análise de Capilé, o momento atual com a ministra Ana Buarque de Hollanda é de enfrentamento e, de uma forma geral, isso é possível graças à construção desse (novo) meio de produção. Além da raiz econômica, a projeção na burocracia os configura politicamente enquanto uma classe gestora, classe que em outros momentos históricos possuiu como projeto a renovação das elites. Mas enquanto dispersos em organizações e instituições, os gestores confundem-se com os trabalhadores na sua oposição à burguesia.
Em caráter elogioso, Alexandre Youssef fez recentemente uma análise sobre o FdE:
“Imaginem um liquidificador em que se possa colocar as ramificações da esquerda, com estratégias e lógicas de mercado das agências de publicidade, misturando rock, rap, artes visuais, teatro, um bando de sonhadores e outro de pragmáticos, o artista, o produtor, o empresário e o público. Tudo junto e misturado. O caldo dessa batida é uma nova tecnologia de participação e engajamento que funciona de forma exemplar para a circulação e produção musical, mas que acima de tudo é um grande projeto de formação política.
O Fora do Eixo cria, portanto, uma geração que se utiliza sem a menor preocupação ideológica de aspectos positivos da organização dos movimentos de esquerda e de ações de marketing típicas dos liberais. É, como disse o teórico da contracultura Cláudio Prado, a construção da geração pós-rancor, quenão fica presa à questões filosóficas e mergulha radicalmente na utilização da cultura digital para fazer o que tem que ser feito.” [grifos nossos] [16]
Podem utilizar os meios militantes e ativistas para ampliar sua influência política e até para expandir seu mercado consumidor de cultura independente, mas não deixarão de ser o que são – uma classe de gestores que visa renovar a burocracia.
VI. A esquerda fora do eixo
Desde a ascensão do PT ao governo e o processo da oposição virar a ordem, forjou-se um pacto social entre as classes que configura-se através da pacificação dos movimentos sociais [17] e diminuição do desemprego por um novo ciclo econômico; além disso, o acesso ao crédito fácil e o Bolsa Família permitiram às classes mais baixas adentrarem no mercado de consumo básico. E, de forma arrebatadora, a promessa de um futuro dourado estaria garantida com a exploração petrolífera da camada pré-sal que permitirá o ingresso do país na OPEP. O brado retumbante do ex-presidente Lula de que “Nunca antes na história desse país…” expôs que, de fato, não se pode mais designar o Brasil como um país “atrasado” na economia global [18].
A conjuntura econômica liquidou o programa de oposição ao governo, seja de direita ou de esquerda, e suas críticas aos programas do governo transmutam-se de acordo com a maré eleitoral: ora dobrar-se-ia o Bolsa Família, ora o mesmo não passaria de um novo clientelismo. O que restou da generalidade dos críticos de esquerda é a sustentação do “socialismo da miséria” [19] e, sem saber responder à social-democracia brasileira, na melhor das hipóteses formulam-se propostas que não ultrapassam a sua própria lógica, como a crítica às consequências da realpolitik governista, isto é, ao enriquecimento a partir dos cargos públicos.
antielistaNesse cenário de transformação global que elevou a imagem do Brasil a hype – sintetizado na capa da The Economist que apresenta a ignição do Cristo Redentor rumo ao espaço –, o “Churrascão da gente diferenciada” revela o seu caráter politicamente ambíguo, em que a incorporação do discurso “antielitista” passou a ser um recado para a nobre elite de Higienópolis: o futuro dos negócios chegou, não ignorem as novas classes médias, pois, mesmo morando na periferia, a sua empregada também pode consumir uma TV de plasma e ter um carro na garagem. O “churrascão” pode, sim, ser compreendido como um ritual lúdico para profanar – sem deixar de estigmatizar – uma elite deslocada do seu tempo, dando boas-vindas aos mais novos consumidores do mercado brasileiro. Um processo que limita-se à modernização da mentalidade e renovação das elites, e que, por isso, foi incapaz de revelar a incoerência de destinar mais recurso público para a ampliação da oferta de transporte público na região mais rica da cidade.
Sem o teatrinho de luta de classes ou antifascista, o que representa a onda anti-Bolsonaro é a recusa em aceitar uma elite arcaica no poder. Antes, a bola da vez foi o senador José Sarney com a hashtag #forasarney no Twitter. Da espontaneidade das mídias sociais não saiu outra pauta política que não fosse a renovação ou rejeição da elite política e econômica.
Os elementos da composição dessa nova elite passam pelo consumo e sustentação de novos habitus, como se deslocar para o trabalho de bicicleta ou a pé – algo inimaginável para um morador da periferia –, reciclar seu lixo, cuidar de pequenas hortas em casa, consumo de orgânicos, baixar músicas e minutar os momentos do dia numa mídia social. As preocupações políticas passam principalmente pela legalização das drogas e pelo meio-ambiente. Uma geração “pós-rancor” que não se apega a discussões “filosóficas”, como define, de forma elogiosa, Cláudio Prado.
Esse descontentamento com o “Brasil potência” tem sido abarcado pelo movimento liderado pela ex-petista Marina Silva. Se ao adentrar o poder o PT implementou um pacto social e tirou de cena os movimentos sociais, é também através da conciliação de classes que os ambientalistas buscam fazer oposição, seja eleitoralmente, nas manifestações ou na criação de um novo habitus. O clímax desse discurso será ano que vem no Rio +20 [20], evento para o qual diversas organizações já preparam as suas ações.
Juntam-se ao campo de “oposição” os grupos que anteriormente hegemonizavam o Ministério da Cultura, como o Fora do Eixo e as ONGs e empresas da Cultura Digital. Essa coletividade ambiental, “antielitista” e “alternativa” é uma das redes que permeiam a Marcha da Liberdade; um nome neutro que pode tanto servir para a Coca-Cola quanto para ativistas inseridos num projeto de classe.
Profissão repórter da Globo entrevista Capilé sobre a Marcha da Liberdade
Profissão repórter da Globo entrevista Capilé sobre a Marcha da Liberdade
Mas, o que o Fora do Eixo apropria da manifestação? Eles se apropriam da comunicação para se projetarem, capturar o “status” de organizadores e depois capitalizar esse público em seu circuito comercial. Esse método difere, por exemplo, de uma campanha do PT ou PSDB, pois não utiliza força de trabalho assalariada para construir sua base social. As ações do Fora do Eixo são a propaganda da organização para o alargamento do mercado e a manutenção de atividades gratuitas para angariarem simpatizantes.
Numa manifestação onde a quantidade de pessoas é consequência da divulgação nas mídias (corporativas e sociais) e não uma causa “real” relacionada ao trabalho cotidiano de formação, construção e mobilização, o refluxo de uma hora para outra é iminente. Um processo semelhante a Marcha da Liberdade são os acampamentos em Portugal e Espanha [21].
Nos limites da renovação e modernização das elites, com esta “geração em rede” mascara-se o conteúdo político das ações de um setor ascendente de uma classe dominante para evitar que se perceba isto que é e jamais poderá deixar de ser um confronto político.

NOTAS

[1] Higienópolis é um bairro de classes média-alta e alta de São Paulo. A sua origem histórica remete ao estabelecimento das famílias aristocratas, mas no decorrer do século XX passou a receber migrantes de origem judaica. Consultado aqui.
[2] Alexandre Youssef é um dos fundadores do site Overmundo, que tem em seu staff Ronaldo Lemos e Hermano Viana. Durante a gestão Marta Suplicy foi coordenador da juventude. Hoje é filiado ao Partido Verde e colunista da revista Trip.
[3] Como a ex-petista Soninha Francine (PPS), coordenadora da campanha virtual do candidato à presidência José Serra, que participou da Marcha da Maconha e da Marcha da Liberdade.
[4] “Independente” e “alternativo” são os termos vagos que as empresas encontraram para ocultar que trata-se de um nicho de mercado para o público universitário e similar.
[5] O jornalista Bruno Torturra categorizou a disciplina do coletivo como “espartana”.
[6] Ministério da Cultura, Revista Trip, 12/05/2011, disponível aqui.
[7] A lista dos editais é pública e pode ser acessada aqui.
[8] Cultura digital é a produção baseada nas novas mídias, mas também é o nome da ONG fundada por Cláudio Prado para gerir o programa Cultura Viva, do Ministério da Cultura. O conceito desenvolvido por essas organizações pode ser lido aqui.
[9] Segundo Gilberto Gil, ex-ministro da Cultura, o Ponto de Cultura é “uma espécie de ‘do-in’ antropológico, massageando pontos vitais, mas momentaneamente desprezados ou adormecidos, do corpo cultural do País”.  Ver aqui.
[12] LESSIG, Lawrence. “Cultura livre: como a grande mídia usa a tecnologia e a lei para bloquear a cultura e controlar a criatividade”. São Paulo: Trama, 2005.
[13] RICHARDSON, Joanne e KLEINER, Dmytri. “Copyright, Copyleft and the Creative Anti-Commons”. Berlin, 2006. Disponível aqui.
[14] Sobre a discussão dos gestores enquanto classe, leia a nota 2 do artigo “Extrema-esquerda e desenvolvimentismo (2)”, publicado aqui.
[15] Não será necessária uma análise quantitativa para saber o quanto da esquerda presente nessa série de manifestações corresponde como um potencial público-alvo para os serviços do Circuito do Fora do Eixo.
[16] Ministério da Cultura, Revista Trip, 12/05/2011, disponível aqui.
[17] De fora para dentro, os movimentos sociais passam por um processo de cooptação e pacificação pelo governo, e, de dentro para fora, a burocratização das lutas impede a generalização das relações horizontais e solidárias entre os movimentos. Ver o artigo “Entre o fogo e a panela: movimentos sociais e burocratização“.
[18] O Passa Palavra investiga numa série de artigos as mudanças profundas que o Brasil tem passado, ver aqui.
[19] Ver “Socialismo da abundância, socialismo da miséria“, de João Bernardo.
[21] “A mobilização assembleiária não se inventa de cima para baixo. Ou nasce de baixo, ou não acontece. Ou corresponde a interesses de classe mais definidos, exprimindo contradições reais da sociedade e medindo forças no terreno, ou se ficará sempre pelos limites - estreitos e efémeros - de uma espécie de festa dionisíaca politizada.” Trecho do artigo “Acampados“.

Nem eixo nem seixo

Foto: Marcha da Liberdade, Av.Paulista – São Paulo, 18 de junho de 2011.
Nem eixo nem seixo  [1]
por Henrique Parra e Gavin Adams [2] (AQui)

Nas últimas semanas e, com maior intensidade logo depois da Marcha da Liberdade (18/06), cresceu um interessante debate em torno das formas de organização social e ação política presentes nessas recentes manifestações. Essas formas de organização ganharam visibilidade aguda no presente debate, mas têm sido desenvolvidas ao longo de vários anos de experimentação militante e sensível. A discussão segue de maneira animada em alguns artigos publicados na Internet. Começamos escrevendo este texto numa troca de emails, mas ele acabou virando este post. Esperamos que contribua para o debate.
Parece-nos que as questões colocadas pelo debate indicam que tanto a reflexão teórica quanto a prática política compartilham um limite comum frente às urgências que têm aflorado no real. Como resultado, na ausência de condições (tanto teóricas como políticas) para que as análises dêem conta da complexidade do problema, as ferramentas analíticas parece que se tornam prisioneiras dos projetos políticos dos sujeitos que estão enunciando e problematizando os “fatos”. Estamos diante de uma fronteira em que as soluções interpretativas apontadas para os problemas empíricos observados são indissociáveis dos pressupostos que pré-configuram o campo político, e que atribuem (de maneira mais ou menos positiva) a agência e o protagonismo político a determinados grupos sociais. Nos debates que estão acontecendo em artigos públicos, listas de discussão e boas conversas de botequim, diferentes argumentos são mobilizados. Neste pequeno comentário, vamos distribuí-los em dois campos, bem representados pelos artigos do Passa Palavra e da Ivana Bentes, apenas para tornar o problema mais visível.
O que primeiro chamou a atenção é que em ambos os casos a análise não pode ser separada de uma vontade/desejo de fazer realizar um certo projeto político, seja a luta de classes em seu porvir revolucionário; seja a multiplicidade sem totalidade de devires de resistência criativa.
Algo está em movimento. A nítida sensação de que algo está a mudar, parece animar o presente debate. Ao esgotamento de tradicionais formas de organização e ação políticas parecem corresponder novas formas de ser e sentir, de trabalhar e morar que não encontram expressão nessas formas tradicionais. Mas, por outro lado, estas transformações parecem se concretizar em configurações específicas de trabalho, de subjetivação, de consumo, de existir e de sentir. A interpretação potencializadora desses fluxos geraria vantagem organizativa que permitiria o crescimento estratégico como que à sombra da velha hegemonia, que carece do instrumental de mesmo apreender o que está em movimento – potencialmente, sua própria destruição, ou pelo menos sua transformação libertária profunda (ou ainda a instrumentalização e aprisionamento das potencialidades para fins de manutenção do capitalismo).
O artigo do Passa Palavra apresenta amplas contribuições para a problematização da atual conjuntura política. Aqui, concentramo-nos em apenas alguns aspectos. Neste artigo, critica-se este conjunto recente de manifestações públicas pois ele não apresenta os componentes esperados de uma ação política potencialmente emancipatória (o que vem a ser essa emancipação já é um problema para a discussão). Denunciam ainda a emergência de mecanismos de exploração econômica e relações de dominação no interior das redes aparentemente horizontais e democráticas (coordenadores, administradores ou produtores como expressão da emergência de uma nova classe gerencial?); e apontam possíveis processos de captura da energia política dessas mobilizações por novos grupos sociais (aparelhamento?). O argumento procede assim: parte-se de uma análise econômica das transformações recentes do capitalismo e se identifica a elas um setor ligado à comunicação. Este setor é composto de gerentes que, compreendendo os novos mecanismos da rede, se interpõem como intermediários entre os trabalho coletivo e sua comercialização. O artigo amplia esta análise para manifestações como a Marcha da Liberdade, julgando-as expressões dessa nova casta de gerentes comunicacionais que agenciam corpos alheios em redes produtivas. No sistema analítico mobilizado pelo Passa Palavra, a forma e a dinâmica do conflito e de seus sujeitos já está dada a priori. A análise não abre mão da economia como gerador de protagonismos socias, e já se sabe qual é a luta relevante a esse tipo de análise e onde se deseja chegar, faltando apenas encontrar ou produzir tais sujeitos (classes populares? novo operariado?) para que a luta aconteça na direção esperada. O texto sugere equivocadamente que o ativismo atual em geral seja a exata expressão do novo capitalismo (open business etc.), ignorando extensa e diversa experiência militante anticapitalista envolvida em formas mais complexas de interação com a produção capitalista [3].
O artigo da Ivana Bentes, por sua vez, critica alguns pressupostos teóricos do artigo do Passa Palavra ao propor que sejam prisioneiros de uma “imagem do pensamento” (para ficarmos no vocabulário deleuziano) que condiciona suas análises, impossibilitando-os de enxergar o novo, suas aberturas e potencialidades. É possível se sentir contemplado pelos diagnósticos agudos proporcionados pelo partido teórico que informa a crítica realizada por Ivana. Porém, temos a impressão que as posições manifestas em seu artigo (são posições teóricas partilhadas por muitos interlocutores) acabam caindo, no âmbito deste debate local, numa armadilha semelhante à que eles querem denunciar.
Deste ponto de vista, o grupo que está no centro das discussões (Fora do Eixo – FdE) seria um bom exemplo das novas formas de luta e de organização social no atual contexto do modo de produção capitalista (capitalismo cognitivo, capitalismo imaterial etc). Em suma, tanto este grupo como outras iniciativas envolvidos nessas várias manifestações no Brasil poderiam ser tomados como expressão da emergência de novos sujeitos políticos (precariado, cognitariado?). Certamente, o problema não é caso tomado como exemplo (FdE), mas deve remeter a um contexto sócio-histórico mais amplo.
Tem sido frequente na grande imprensa e na Internet a tentativa de se estabelecer aproximações “identitárias” entre essas movimentações do Brasil com outras da Espanha, Tunisia e Egito, dentro do impulso de nomear o novo e o inominável, domando e controlando pelo discurso, reduzindo estas formas a formatos esperados e de antemão presos à análise política jornalística. Há, todavia, diferenças evidentes entre o contexto social, econômico e politico do Brasil com esses países e, também, no perfil do público jovem que protesta aqui e nesses países. Ao tentar interpretar esses movimentos recentes a partir dessas categorias, e ainda, ao conectá-los culturalmente (e ideologicamente) aos levantes árabes e protestos europeus, não estaríamos diante de uma análise que produz um real à semelhança de um projeto político que se deseja ver realizado? Assim, ao invés de buscar uma forma em vias de se realizar, talvez, o mais interessante, seja buscar as “zonas de vizinhança” entre esses acontecimentos.
Portanto, em que medida tal análise que se pretende “imanente” (pela evidente vinculação teórica, que alias apreciamos parcialmente) não acaba por restabelecer um télos que pretendia negar? Neste caso, ao contrário das posições traduzidas no artigo do Passa Palavra, no artigo da Ivana Bentes o argumento procede da seguinte forma: sabe-se quem são os sujeitos políticos, sabe-se quais são suas formas de ação (a resistência pela multiplicidade, a luta das minoridades (que não se confunde com as minorias…) sendo necessário produzir e dar forma à sua luta política (não representativa, não unitária, não totalitária).
Há ainda um outro ponto em comum a partir do qual as diversas posições sobre o problema estão gravitando: a categoria trabalho. De um lado (Passa Palavra), o diagnóstico aponta que o trabalho e sua racionalidade de tipo capitalista dominou todas as esferas da vida, material e subjetiva, e isso efetiva a opressão e a super-exploração. De outro, o trabalho nas sociedades contemporâneas, mediante a ganho de centralidade do capitalismo imaterial, tornou-se cada vez mais “comunicacional”, diluindo as antigas dicotomias que definiam as fronteiras entre: trabalho e de não-trabalho; autonomia e heteronomia; emancipação e exploração, entre outras. Mas, ao mesmo tempo, sob esta perspectiva (do capitalismo cognitivo) seria possível enunciar outras possibilidades de luta e criação politica (as lutas pelo comum).
Interessamo-nos por ambas as posições e estamos animados com a possibilidade que temos de colocá-las em confronto a partir de um problema empírico que se apresenta diante de nós. Duvidamos, entretanto, que os problemas enunciados neste debate tenham respostas fáceis ou prontas. O momento parece exigir, simultaneamente, a prudência e a ousadia de ouvir com atenção e desconfiança o canto das multidões e das sereias. Talvez, o mais produtivo seja realizar um esforço para caracterizar e descrever quais são os problemas que estão colocados na mesa por ambas e outras perspectivas. Inevitavelmente, tal percurso irá interrogar tanto nossos pressupostos como as visões de futuro que inspiram o pensamento. Tal tarefa é necessariamente coletiva, e já está sendo realizado em diversos lugares por muitas pessoas. Assim, limitamo-nos a lançar alguns pontos que podem ajudar a dar visibilidade à encruzilhada, à fronteira do indistinto. É neste ponto que estamos, onde teoria e prática política estão se reinventando. Diriamos que a Política é exatamente este conflito pela definição das fronteiras do indistinto.
Que outros pontos poderiam entrar nesta lista? É preciso discuti-los:
  • Política e Trabalho: este binômio aparece sob diferentes formas (e.g. liberdade x necessidade). Fazer política no reino do trabalho? Ou a política só é possível fora da esfera das necessidades? Trabalho como meio ou fim para a livre criação? Talvez os artistas respondem essa pergunta de maneira diferente dos metalúrgicos, mas a coisa fica mais complicada quando aparentemente algumas qualidades do trabalho criativo passam a ser solicitadas em outras esferas. Tal problema aparece também nas tensões entre o livre ativismo e as necessidades de sustentabilidade financeira dos movimentos: relação financeira X política efetiva. Trabalhamos o ano inteiro e vamos fazer revolução nas férias? Ou tentamos trabalhar fazendo as micro-resistências cotidianas? Ou reduzimos o trabalho para ter tempo livre pra fazer política? Enfim, qual o lugar da política? Essa questão está sendo respondida de diferentes formas.
  • Capitalismo Imaterial (pós-fordismo) e Capitalismo Material: é relativamente fácil de constatar que muitas coisas mudaram na economia e nas relações de trabalho nos últimos 30 anos. O difícil é confirmar o que mudou e o que persiste, reexiste. Quais as continuidades e transformações? Elas se dão da mesma forma nos diferentes países? Pode-se afirmar que houve um certo deslocamento e crescente importância do chamado trabalho imaterial para a produção de valor monetário. As guerras sobre a propriedade intelectual refletem isso em certa medida. Ao mesmo tempo, é curioso observar, por exemplo, a atual disputa geopolítica por terras cultiváveis, pela água e pelos minérios raros. Como diz um amigo, “é preciso fazer as contas” e refletir se e onde se dá a exploração, e julgar se abandonar essas ferramentas como obsoletas não interessa apenas àqueles que desejam rearticular essas relações de exploração dentro de um ambiente de rede. Diríamos que, além de fazer as contas, teremos que enfrentar um inescapável problema teórico e político pela definição do que entra ou não na contabilidade.
  • Esgotamento do modelo de representação política (partidos políticos, sindicatos etc): em que pese a crescente descrença nos partidos políticos (ha sempre uma pesquisa disponível pra mostrar como os jovens não se vêem representados nos partidos) estão surgindo novos partidos no Brasil. Curiosamente, alguns grupos que criticam esta forma de representação estão criando iniciativas que apontam para um possível devir-partido (Partido da Cultura, Partido Pirata…). Os sindicatos, ainda que inseridos em dinâmicas de burocratização e relativamente atrelados aos governos, são atores relevantes e também sob disputas internas. No momento, o emprego formal cresce no Brasil. Veremos novas estruturas de representação emergir? Como combinar a luta por direitos (que implicam em mecanismos de institucionalização) com a luta pela crescente expressão das diferenças e minorias (não-numéricas, mas aquilo que não é hegemônico)? Uma lei sempre define um dentro e um fora? Velhas questões que continuam atuais e respondidas de formas diversas…
  • Trabalho e não trabalho; trabalho colaborativo e novas hierarquias: onde está a fronteira? Por exemplo, quando a livre formação contínua (acesso à cultura) é indistinta da formação para o trabalho como ficam os problemas relativos à reprodução do trabalho? E como fica a distribuição do trabalho e a apropriação dos valores gerados a partir do trabalho colaborativo? Onde começa e termina a colaboração e a exploração? Será que faz sentido falar em exploração nesses contextos? (claro que não estamos falando das condições neo-fordistas dos info-proletários).
  • Projeto(s) político(s): não se trata de ter um projeto politico (felizmente não há um), mas isso não significa que não exista projeto algum! Afinal, quais são os projetos e horizontes políticos que estão silenciosamente guiando nossas reflexões e práticas? Nesta atual encruzilhada teórica e política seria falso dizer que nossas análises não estão sendo informadas por tais projeções. Há, em boa parte dos grupos ativistas envolvidos nessas mobilizações, um discurso atualizado da luta e dos modos de organização não-institucional. Não se trata de restabelecer processos pré-determinados ou totalidades preestabelecidas, mas isso não significa pensar a prática política apenas em seus momentos instituintes, reduzida só ao acontecimento efêmero. Diversas linhas de ação, do final dos anos 60 e mesmo os movimentos anticapitalistas do ciclo Seatle, formaram-se num horizonte de práticas criativas, não-institucionais e sem grandes metanarrativas ou projetos finais que orientassem suas ações. Entretanto, passado os momentos disruptivos quais eram as iniciativas que emergiam e ofereciam condições de respostas organizativas à sociedade? Há boas lições dessas iniciativas. Como articular as novas formas de luta, a potencia criativa, os momentos instituintes com as dinâmicas que exigem maior duração e organização no tempo-espaço?
Novamente, são esses e outros (quais outros?) problemas/dilemas que estão na mesa, gerando diferentes respostas e influenciando as possíveis formas de organização social e luta política. Descrever, cartografar, analisar, problematizar essas situações e fazê-lo de forma compartilhada é uma tarefa relevante se quisermos ultrapassar as pequenas divisões e os conflitos que hoje enfraquecem esses movimentos.
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[1]  O texto dialoga, em especial, com dois textos. Recomenda-se a leitura de ambos:
A esquerda fora do eixo – foi publicado como editorial no Passa Palavra [www.passapalavra.info].
A Esquerda nos Eixos e novo ativismo – de Ivana Bentes, publicado no Trezentos [www.trezentos.blog.br].
[2] Henrique Parra: polart [arroba] riseup.net ; Gavin Adams: gavartist [arroba] yahoo.com
[3] Pablo Ortellado publicou um ótimo texto onde é feita esta análise de maneira detalhada: Capitalismo e Cultura Livre:http://www.gpopai.org/ortellado/2011/06/capitalismo-e-cultura-livre/